ENQUANTO O FOGO CONSUMIA MINHA HERANÇA
Percival Puggina
Anteontem,
enquanto observava, aflito, parte da minha herança arder flamejante no coração
de Paris, eu pensava sobre essa dimensão de nossa natureza, perdida pelo
esquecimento e consumida nas chamas da perversidade. Nas conhecidas palavras de
Émile Henriot: “Cultura é o que resta quando esquecemos tudo”. E nós, estamos
esquecendo esta condição de herdeiros de uma cultura, de usufrutuários das imateriais
riquezas da civilização ocidental.
O
cotidiano me adverte ainda mais. Estamos sendo ensinados a desprezar toda essa
herança, a começar por nossas raízes; a ultrajar os pais da Pátria; a viver sem
fé, sem origem e sem sentido; a lastimar o passado, num presente lastimável,
rumo a um lastimável futuro. Não estou fazendo frases, leitor amigo, estou
amargamente curioso. Quero saber dos algozes da mais elevada, rica e
culturalmente produtiva civilização que a humanidade conheceu: qual vosso ponto
de chegada? Aonde vamos com negação do belo e com a aclamação do horrendo e do
perverso em todas as formas de arte? Se abandonamos tudo que eleva o espírito,
a força de gravidade o derruba para o nível das mais rasteiras paixões! Por
isso deveríamos aprender a reconhecer e amar o bem, o belo, o bom e o justo.
Mas quem cuida disso?
O passar
dos anos desenvolveu em mim, com intensidade crescente, a consciência de ser um
ocidental. Quem me dera, também, a ciência! Esse sentimento se aprofundou à
medida que, em sucessivas viagens e como principal interesse de todas, minha
mulher e eu visitamos centenas de igrejas românicas, góticas e barrocas em toda
a Europa. São obras empreendidas por gerações de artesãos, artistas e operários
que morriam sem as ver prontas, seguidos de outros, e de outros, ao longo de
séculos. Não há como não ver materializado aí o sentido do sagrado e o sagrado
sentido da herança cultural. Tal riqueza diz presente, também, nos museus, nas
artes visuais, na literatura, na música, na dança, no teatro e na difícil, mas
positiva, evolução das instituições políticas.
Essa
cultura chegou até nós nas caravelas de Cabral. Sim, veio a bordo coisa boa e
coisa ruim. Veio salvação e perdição. O que dói na alma, cinco séculos
passados, é ver tanta gente escrutinando a coisa ruim e a perdição. O que dói
em mim é saber, como sei, por que tantos jovens me contam, do mesquinho
trabalho a que se dedicam os incendiários de catedrais interiores. Em vez de as
construir, fazem-nas arder no cultivo de maus sentimentos, no desrespeito ao
nosso belo idioma, na animosidade em relação ao amável Portugal e aos pais da
nossa pátria, na negação da fé sem a qual não haveria essa cultura e essa
civilização.
Assim,
com redobrada tristeza, as chamas que queimavam minha herança em Notre-Dame me
faziam lembrar das catedrais interiores que queimaram, ou que não foram nem
serão construídas por falta de artesãos.
* Percival Puggina (74), membro
da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e
titular do site www.puggina.org,
colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o
totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do
Brasil. Integrante do grupo Pensar+.