OS VELHOS CRUCIFIXOS E OS NOVOS VAMPIROS
Percival Puggina
Aparentemente
é bem simplória a questão agora suscitada por um vereador de Porto Alegre: se o
Estado é laico, os espaços públicos ou, de responsabilidade do Estado, não
deveriam ser isentos de qualquer religiosidade? Pagãos como banheiros de
estação? Desde essa perspectiva, crucifixo em parede de plenário, ou
repartição, seria atropelo à equidade e agravo à Constituição e à Justiça.
“Remova-se, então!”, reiteradamente propõem alguns. Tenha-se a coragem, porém,
de assumir perante a história o registro da façanha: preserve-se o prego!
Preserve-se-o para que todos conheçam o notável serviço público prestado.
Preserve-se-o para registrar a anterior existência ali de um crucifixo removido
por abusivo, ofensivo, intolerável às almas sensíveis que, em nome da justiça e
da equidade, se mobilizaram contra ele.
Por que
a retirada de crucifixos é tema polêmico? Por que vira notícia sempre que
ressurge para tiquetaquear minuto de fama a alguém? Afinal, estarão enganados
os cíclicos autores dessas iniciativas? O dedo acusador da Constituição não
aponta para o crucifixo mandando arrancá-lo dali? No entanto, se o admitirmos,
teremos que reconhecer como cegos de bengalinha ou iletradas toupeiras, os
juristas, parlamentares, professores, constituintes, magistrados, ministros do
STF que trabalham em locais públicos onde há crucifixos. Há que declará-los
incapazes de entender o que esteve escrito em todas as nossas constituições
republicanas sobre separação entre Igreja e Estado.
Os
padroeiros da modernidade que esgrimam contra símbolos religiosos esquecem que
desde a Constituição de 1891 os preceitos constitucionais sobre essa separação
foram deliberados pelos redatores de nossas sete Cartas, majoritariamente
cristãos! Ela é concepção da maioria e não é conquista de alguém. Podem
sossegar o facho. O país nada deve ao iluminismo temporão.
Pergunto:
de cada cem pessoas que ingressam no plenário da Câmara de Vereadores de Porto
Alegre, quantas ficam dispneicas, tarquicárdicas ou entram em sudorese se veem
um crucifixo? Nenhuma? Pois é. E quantas - na real, sem exageros - se sentirão
pessoalmente injuriadas por aquele símbolo? Pois é, de novo. Perante símbolos
religiosos – quaisquer símbolos, de qualquer religião! – pessoas normais reagem
com respeito ou com indiferença. Indignação, revolta, alergia escapam à
normalidade. Portanto, os que investem contra crucifixos e enrolam seus
argumentos na Constituição Federal são portadores de uma idiossincrasia, de uma
fobia pessoal. Tal abominação é um problema que está nelas. Juro, o crucifixo é
inocente! A ideia de sua retirada toma a situação pelo avesso. Considera
discriminatória a presença do símbolo, quando discriminador e preconceituoso é
quem posa de ofendido por ele. Ou não?
O Estado brasileiro não é ateu, é laico,
mas a laicidade, no sentido em que é definida pela Constituição, recusa as
pretensões do ateísmo militante. O Estado brasileiro não é inimigo da fé; ao
contrário, com vistas ao interesse público, colabora com as confissões
religiosas (CF, art.19,I). Prevê assistência religiosa aos que estão
presos (CF Art. 5º VII). Também por essa compatibilidade de fins há
capelães nas Forças Armadas. Retirar os crucifixos para acolher como saudáveis
reações que afrontam a consciência civilizada não é defender o laicismo, mas
curvar-se ao ateísmo militante, de pouco futuro e péssimo passado.
Os adversários dos crucifixos
referem-no, mas focam, lá na frente, os princípios, os valores e as tradições
que lhe são implícitos. Muitos, como os relacionados à defesa da vida, à
dignidade e aos direitos humanos, às liberdades, à família, compõem convicções
constitucionalizadas no Brasil e se refletem nas deliberações legislativas. É
contra esse alvo que o ateísmo militante está declarando guerra e rufando
tambores. Não agem por amor à Constituição, mas por repulsa ao perfume cristão
que ela legitimamente ainda exala e volta a ser percebido neste novo momento da
política nacional.
Curiosa ideia, essa. Em nome do laicismo
estatal, num país onde mais de 90% dos cidadãos professam alguma religião
cristã, ela desconhece o próprio povo, sua cultura e sua história e pretende
retirar um símbolo que para esse mesmo povo representa o amor de Deus, o amor
ao próximo, a Redenção e os mais elevados valores que deveriam iluminar as
decisões e a justiça dos homens. E eu pensava que só vampiros tinham horror de
crucifixos.
* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é
arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org,
colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o
totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do
Brasil. Integrante do grupo Pensar+.