Percival Puggina
Gosto
de escrever crônicas. No entanto, raramente consigo pois a urgência e a
arrogante importância das pautas cotidianas consomem meu tempo. Hoje, não.
Aconteceu
no centro de Porto Alegre, em local inesperado e hora imprópria, proporcionado
por uma única protagonista. E duvido que a maior parte dos transeuntes tenha
prestado qualquer atenção ao que estava em curso.
A
personagem cobria-se com andrajos. A pele, envelhecida, visivelmente não se
encontrava com água há muito tempo. Todo seu aspecto, dos cabelos aos pés, dava
a impressão de se tratar de pessoa egressa de um sanatório para doentes
mentais. Sentada ao meio-fio, ignorando
o mundo que fluía ao seu redor, com um rasgado sorriso de felicidade, a mulher
pintava as unhas dos pés descalços.
Foi
um flash, um instante fugaz, colhido pela retina enquanto o carro descia a
movimentada rua. Mas nunca esquecerei a imagem de alguém que perdeu tudo,
inclusive a razão, sem perder a vaidade. A mais bela metade da humanidade
estava ali representada, num espetacular, eloqüente e silencioso comício da
feminilidade.
Pode
parecer estranho, mas me senti, como homem, homenageado por aquele gesto
aparentemente tão impessoal e fútil quanto deslocado. Mulher mãe, filha,
esposa, namorada, amante. Mulher sadia ou enferma; bem cuidada ou maltratada.
Vaidosa, dengosa e valente. Não há no mundo nada mais importante nem mais
interessante do que a mulher.
Quantas
lutas não encontraram lenitivo no vazio daquela loucura? Quanto abandono,
traição e combate desigual não a conduziram ao precipício da demência? Mas a
vaidade, mulheres que me lêem, a tudo resistiu. Quantas pessoas não terão
passado ali e visto nada além de uma expressão da moléstia? E no entanto –
insanos! – aquelas mãos sujas escreviam nos pés encardidos, com pincel e esmalte,
uma poesia de rara beleza.
Leitor
fugaz daqueles versos eternos, deixo aqui minha própria homenagem ao que eles
expressam. E fique a pauta política inteira para amanhã!
* Percival Puggina (72), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é
arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org,
colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o
totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do
Brasil. integrante do grupo Pensar+.