terça-feira, 11 de abril de 2023

Sobre as Greves na França

 Flavio Arruda Cerqueira

Para variar, a França está em greve. O povo que mais grita pela liberdade e comemora anualmente a revolução contra um governo opressivo que marcou a história da democracia moderna hoje tem como tradição cobrar o governo por mais direitos e menos deveres – e o faz da pior forma possível, ano após ano.

O movimento dos gilets jaunes que destruiu Paris em 2018 e 2019 com demandas diversas e desorganizadas, hoje é sucedido por protestos que paralisam inúmeros serviços públicos e cerceiam a liberdade de ir e vir de milhões de franceses em nome de uma variação da mesma causa.

O estopim da revolta da vez foi a reforma da previdência proposta pelo governo do atual presidente Emmanuel Macron (é bom lembrar que uma reforma semelhante ocasionou uma reação semelhante em 2010 em um país onde, de acordo com um estudo da Comissão Europeia de 2021, 14.8% do PIB é gasto com o sistema previdenciário – o terceiro maior gasto percentual entre os países da União Europeia).

É consenso entre economistas, até por ser óbvio, que sistemas de previdência que garantem um benefício ao final da vida dos trabalhadores não podem ser viáveis caso a expectativa de vida desses mesmos trabalhadores cresça além do esperado. O crescimento da expectativa de vida é evidentemente algo que deve ser comemorado, porém, não é condizente com um sistema assistencialista retrógrado como o da França (ou o do Brasil).

O aumento da idade da aposentadoria é uma solução de curto prazo que garante a manutenção de um sistema ruim. O progresso científico vai continuar e a expectativa de vida média vai aumentar – isso ocorre desde o fim da Idade Média e não há razões lógicas para acreditar que seria diferente agora. O que deveria estar sendo proposto por governos mundo afora é a mudança do paradigma de um sistema assistencialista e economicamente inviável de previdência para um conjunto de medidas que incentivem os indivíduos a planejarem seu próprio futuro financeiro da forma que melhor lhes convier. É impossível que a centralização da decisão de alocação de recursos por uma entidade maximize a utilidade para todos os usuários dos recursos – cada indivíduo tem sua tolerância ao risco e suas aspirações, logo sua utilidade só pode ser maximizada se ele puder escolher como alocar seu próprio capital – governos parecem querer esquecer a máxima que “todos nascem iguais, mas no dia seguinte já são diferentes”!

Esse sistema já existe e funciona muito bem nos Estados Unidos – as chamadas tax-advantaged accounts, notoriamente o 401K ou IRA (contas de aposentadoria individuais), são contas com incentivos fiscais de diferimento ou isenção de pagamento de imposto sobre a renda e ganhos de capital que se tornaram dispositivos ubíquos acessíveis para o planejamento financeiro de qualquer trabalhador americano (com a exceção de funcionários públicos de alguns estados). Os poucos planos de pensão com benefício garantido ao final da vida que sobraram nos Estados Unidos também enfrentam crises frequentes (e.g., CALPERS), pois, não obstante a qualidade da gestão de recursos, a estruturação de tais planos desconsidera os fatores supracitados, inerentes à condição daqueles que eles se propõem a assistir.

Trabalhadores que escolhem ou não conseguem contribuir para tais sistemas por terem gastos muito próximos a sua renda, por exemplo, serão amparados no futuro pelo sistema de seguridade social. Essa divisão entre aposentadoria e seguridade social desloca a responsabilidade da manutenção do padrão de vida de um indivíduo para si mesmo ao invés de deixá-la recair para o Estado. A seguridade social é importante de um ponto de vista humanitário e societal – ela garante o mínimo para que pessoas vivam com dignidade, colabora com a manutenção da ordem e é amplamente vista como justa. A expectativa de manutenção de padrões de vida que excedem o mínimo por alguém que não seja o próprio indivíduo é absurda – é esperar que alguém trabalhe mais, doe seu tempo de vida para pagar pelos gastos dos outros.

Mesmo que algumas pessoas com um viés ideológico mais alinhado com pensamentos de esquerda acreditem ser moralmente aceitável, ou até mesmo louvável, que a distribuição de renda ocorra para equalizar padrões de vida (e não apenas para manter um padrão mínimo que garanta a dignidade de todos), essa ideia é impraticável. O mercado de capitais é global e aberto; as fronteiras geográficas são cada vez mais abertas – especialmente, para indivíduos com recursos financeiros elevados a seu dispor; não é difícil imaginar, e é também empiricamente observável, que medidas que promovam a taxação maior dos mais ricos para sustentar gastos assistencialistas maiores, além do essencial, para os mais pobres, gerariam uma reação dos espoliados na forma de um êxodo seja de capital ou físico. Se impostos aumentam, torna-se econômica a contratação de serviços de offshoring ou até mesmo a mudança de endereço fiscal, dependendo do caso. Medidas de aumento de impostos tem um efeito parabólico no crescimento de receitas com ganhos marginais para o governo que diminuem com cada percentual de aumento até que se revertem em perdas – é a chamada Curva de Laffer.

Mesmo em uma economia fechada isso ocorreria pela mudança no comportamento dos indivíduos – cruamente: se impostos são altos demais, não vale a pena trabalhar. Em economias abertas, o efeito negativo do aumento de impostos é sentido ainda mais rapidamente, pois as pessoas podem escolher sair do país e é impossível que haja uma colusão governamental global abrangente o suficiente para que regimes fiscais se padronizem. Apesar de avanços recentes nesse sentido, a realidade ainda é um mar de regimes fiscais diferentes repletos de loopholes que garantem a empregabilidade de advogados tributaristas por décadas a vir.

A ideia defendida por alguns grupos protestantes na França (e vários integrantes do governo brasileiro atual), a taxação dos mais ricos para financiar programas mais abrangentes de assistência social e, no caso da França, a manutenção da idade de aposentadoria, desconsidera a facilidade com que a fuga de capital ocorre. Quando o governo argentino teve a brilhante ideia de taxar “grandes fortunas” em 2019, sua maior conquista foi o aumento do preço de imóveis em Punta del Este, para onde muitos dos argentinos que seriam afetados se mudaram.

O dispêndio de capital político em uma reforma da previdência é inevitável – indivíduos se revoltam ao perder seus “direitos já adquiridos” mais do que aqueles que vão ter que pagar a conta se revoltam ao adquirir mais deveres. Isso já é previsto pelo princípio básico da economia comportamental – o Prospect Theory, que postula e comprova um viés comportamental humano em que perdas são mais dolorosas do que ganhos são prazerosos.

Seria ideal que governantes dispendessem tal capital político em prol de medidas que atacassem a raiz do problema e fossem benéficas no longo prazo: um sistema que separa a aposentadoria da seguridade social e coloca a responsabilidade pela manutenção do padrão de vida em cada indivíduo e não no coletivo. Vale lembrar que Paulo Guedes tentou fazê-lo com o que ele chamava de Sistema de Capitalização, mas teve sua proposta amplamente criticada pelo poder legislativo: mais um entre tantos exemplos de situações em que o capital político não foi alocado de forma a maximizar o retorno do capital público, e a mesma história se repete na França.