19/12/2018 -
UM DIA EXTRAORDINÁRIO NO MUNDO DO CRIME
Percival Puggina
Quando alguém escrever a história do
submundo brasileiro, fatalmente algumas linhas serão reservadas ao ocorrido
nesta quarta-feira, 19 de dezembro de 2018. Duvido que em qualquer outro
momento, desde o início da ocupação e povoamento do território nacional, tenha
havido uma decisão judicial, do tipo cumpre e não bufa, mandando soltar mais de
cem mil criminosos condenados, jamegão aplicado com elegância de um floreio de
caneta e magnanimidade que sequer Jesus, na cruz, sinalizou a seus discípulos.
Assim
foi, benevolente e generoso, o gesto de Marco Aurélio Mello, conforme visto por
Marco Aurélio Mello. Naquele ato, a Justiça ganhava um redentor. O Supremo
absoluto! O resto do Brasil, claro, teve outras interpretações e adjetivos,
sendo difícil saber quais os mais escabrosos. Revendo os fatos. Apagavam-se as
luzes para o recesso judiciário e o ministro assinou a ordem que imediatamente
explodiu em celebrações nos corredores de todas as penitenciárias brasileiras.
Comemorações fantásticas! Abraçavam-se homicidas, barões do tráfico, chefes de
quadrilha de roubo de cargas, estupradores, corruptos e corruptores, políticos
e empresários da pior espécie. Todos condenados por atos criminosos com culpa
reconhecida em segunda instância. No
meio da tarde, anteviam-se cenas de filme de terror. As ruas seriam invadidas
pela fina flor da bandidagem. Distopia à brasileira, servida com gotas de
Rivotril. Foi muito breve, mas épica, a festa da crême de la crême da criminalidade nacional.
Indagado
sobre as reações de sua decisão, o ministro afirmou que seriam “um teste para a
democracia e para saber se as instituições ainda são respeitadas”. É a tal
coisa. Marco Aurélio Mello desrespeita três ou quatro votações e deliberações
consecutivas, em que foi voto vencido no colegiado a que pertence, e se
apresenta como quem propôs um democraciômetro. Tipo pegadinha, sabe? A efetiva
soberania popular e o respeito às instituições, na perspectiva de Marco
Aurélio, dependeriam do acatamento à ordem que ele havia exarado. “La democracia
soy yo!”, talvez ponderasse, na mesma situação, aquele argentino vigarista, de
bigodinho, personagem do Jô Soares. Disse mais o ministro. Afirmou que não
queria encerrar o ano judiciário sem deixar resolvida a pendenga da prisão após
condenação em segunda instância. Pois é. Questão com elevado interesse à mais
lucrativa criminalidade nacional. Foi como se a escrivaninha do ministro
estivesse encerada, polida e fechando o ano limpa como mesa de convento; as
gavetas vazias, as prateleiras nuas, nenhum processo pendente de decisão,
exceto essa incômoda questão que, impropriamente, submetia às inconveniências
do cárcere bandidos cujos crimes sequer estão mais em discussão.
Então, o ministro limpou a pauta e sujou
a barra. Nem água sanitária reabilita
mais o branco de sua ficha.
Alegria de bandido rico, por vezes, dura
menos do que o dinheiro pode comprar e, nem Toffoli aderiu à gandaia geral
pretendida pelo ministro. A apreensiva sociedade brasileira, nesta madrugada em
que escrevo, pôde dormir com menos sobressaltos. Estupradores, homicidas,
corruptos e corruptores, traficantes e chefões de quadrilhas de tráfico e roubo
de cargas continuarão recolhidos ao xadrez. Algumas sentenças de morte há muito
juradas desde o interior dos presídios não serão cumpridas. Certos crimes não
serão cometidos porque seus potenciais executores continuam presos. Vou dormir
devendo esta conta, justamente, ao companheiro Toffoli. Quem haveria de dizer?
Quem haveria de dizer, Zé Dirceu?
* Percival Puggina (74), membro da Academia
Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org,
colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o
totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do
Brasil. integrante do grupo Pensar+.