O Evangelho perdido
Mario Eugenio Saturno
Abordamos no artigo “Um mesmo olhar no Evangelho” um
pouco da história dos quatro Evangelhos e do pesquisador Johann Jakob Griesbach
que em 1776 publicou “Sinopse dos evangelhos” iniciando a era da crítica
evangélica.
Antes de Griesbach, consideravam-se os evangelistas como
testemunhas oculares dos fatos ocorridos e seus escritos estavam isentos de
qualquer erro ou contradição. Agostinho de Hipona, em 399, expusera em seu ”De
consensu evangelistarum” que os Evangelhos teriam sido escritos na ordem em que
estão no Cânone. A crítica literária muda isso, inclusive a abordagem da vida
de Jesus.
Griesbach estuda e procura explicar a notável e complexa
teia de concordâncias e discordâncias entre Mateus, Marcos e Lucas. A exposição
sinótica consiste numa série de unidades distintas de narrativas e discursos,
completas em si mesmas, e frequentemente colocadas uma após outra,
independentemente de qualquer ligação espacial ou temporal. À vista das
semelhanças, a conclusão parece se impor: os sinóticos, de alguma maneira,
parecem depender literalmente uns dos outros. Na realidade, a questão se
complica quando se sabe que os três evangelhos diferem também muito uns dos
outros, tanto no conteúdo quanto na forma.
A relação entre os três evangelhos sinóticos vai além da mera
semelhança dos pontos de vista. Os evangelhos frequentemente contam as mesmas
histórias, geralmente na mesma ordem, e às vezes usando as mesmas palavras.
Estudiosos notam que as semelhanças entre Marcos, Mateus e Lucas são grandes
demais para serem explicadas por mera coincidência.
Basta observar as estatísticas para verificar a questão
levantada. Os três Evangelhos têm 330 versículos em comum. Entre Mateus e
Marcos são 178 versículos comuns. São 100 entre Marcos e Lucas e 230 entre
Mateus e Lucas. De versículos próprios, Mateus tem 330 (de um total de 1068),
Marcos tem 53 (de 661) e Lucas, 500 (de 1160).
Sabemos que o Evangelho, inicialmente, era oral e que,
depois, foi escrito e dessa tradição nasceram o Evangelho de Marcos e outro
documento que foi denominado Quelle (fonte, em alemão) ou simplesmente Q. Essa
tese foi chamada de Teoria das Duas Fontes.
O documento Q teria sido escrito e em grego, já que se
veem semelhanças nessa língua na redação dos Evangelhos. O documento Q está
perdido, mas pode ser parcialmente reconstruído, examinando os versículos
comuns entre Mateus e Lucas (e ausente em Marcos).
Este documento Q reconstruído é notável na medida em que
geralmente não descreve os acontecimentos da vida de Jesus, já que Q não
menciona o nascimento de Jesus, a escolha dos 12 apóstolos, a sua crucificação,
e sua ressurreição. Em vez disso, ele parece ser uma coleção de provérbios e
citações de Jesus.
Às vezes, a exatidão na formulação é impressionante, por
exemplo, a narrativa de Mateus 6:24 é igual à de Lucas (16:13) e,
respectivamente, também a narrativa em Mateus 7:7-8 é igual à Lucas 11:9-10 (24
palavras gregas cada).
Obviamente, depois, outros estudos levaram a outras
teorias mais bem elaboradas, mostrando que realmente é preciso muito estudo
para entender e ensinar a Palavra de Deus.
Mario Eugenio Saturno (cientecfan.blogspot.com) é
Tecnologista Sênior do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e
congregado mariano.