A
CONSTITUIÇÃO “CIDADÔ, A DE MOURÃO, E A VIÁVEL
Percival Puggina
A Constituição Federal de 1988
encontrou muitas rejeições pontuais, mas poucas atacaram a integralidade do
texto, ou sua essência. Não por acaso, as críticas que se tornaram mais
conhecidas procederam da bancada do PT e do deputado Roberto Campos. Por motivos
opostos, claro. Os petistas (para variar...) queriam uma Carta muito pior.
Empenharam-se em formatar um país socialista, com ainda mais Estado e menos
direito à propriedade privada. Por isso, votaram contra a Carta de 1988.
A
reprovação do texto constitucional foi objeto de discurso de Lula no dia da
promulgação. Após elencar um amplo conjunto de restrições ao que fora
consagrado pelo plenário, ele assim se expressou:
“Sei que a Constituição não vai resolver o problema de mais de 50
milhões de brasileiros que estão fora do mercado de trabalho. Sei que a
Constituição não vai resolver o problema da mortalidade infantil, mas imaginava
que os Constituintes, na sua grande maioria, tivessem, pelo menos, a
sensibilidade de entender que não basta, efetivamente, democratizar um povo nas
questões sociais, mas é preciso democratizar nas questões econômicas. Era
preciso democratizar na questão do capital. E a questão do capital continua
intacta. Patrão, neste País, vai continuar ganhando tanto dinheiro quanto ganhava
antes, e vai continuar distribuindo tão pouco quanto distribui hoje. É por isto
que o Partido dos Trabalhadores vota contra o texto e, amanhã, por decisão do
nosso diretório – decisão majoritária – o Partido dos Trabalhadores assinará a
Constituição, porque entende que é o cumprimento formal da sua participação
nesta Constituinte.”
O
senador Roberto Campos, por seu turno, diagnosticou corretamente: aquele texto
era excessivamente socialista, iria quebrar o país e demandaria uma carga
tributária muito danosa à iniciativa privada e ao desenvolvimento econômico e
social. Entre muitas de suas apreciações sarcásticas, destaco estas duas:
“Nossa Constituição é uma mistura de dicionário de utopias e
regulamentação minuciosa do efêmero; é, ao mesmo tempo, um hino à preguiça e
uma coleção de anedotas; é saudavelmente libertária no político, cruelmente
liberticida no econômico, comoventemente utópica no social; é um camelo
desenhado por um grupo de constituintes que sonhavam parir uma gazela.”
“É difícil exagerar os malefícios desse misto de regulamentação trabalhista e dicionário de utopias em que se transformou nossa Carta Magna. Na Constituição, promete-nos uma seguridade social sueca com recursos moçambicanos.”
A
razão estava com Roberto Campos. A estas alturas já é ampla a percepção de que
a Constituição de Cidadã arrombou a torneira do gasto público e contém travas e
amarras que dificultam nosso desenvolvimento social e econômico. São conceitos
e preceitos que impedem o cumprimento da lei e a defesa da ordem pública,
cristalizam os corporativismos, favorecem a criminalidade em geral e a
corrupção em particular, oneram a produção e elevam a carga tributária. Talvez
nada represente melhor o camelo identificado na analogia de Roberto Campos do
que a infeliz arquitetura institucional desenhada na Constituição de 1988.
O
que fazer, se a Carta é um problema? Jogar fora e escrever outra? Quem pode
assegurar que a nova não incorrerá em erros maiores, ainda que através de uma
constituinte exclusiva? Se levarmos em conta o que se ensina e o que pauta o
pensamento político no meio acadêmico brasileiro, são elevadíssimas as
possibilidades de que isso ocorra. Tal constatação levou o general Mourão,
movido a boa intenção, a sugerir nova carta, a ser redigida por um grupo de notáveis
para posterior submissão a referendo popular. A ideia não soa bem sob os pontos
de vista político e formal.
“Notáveis”
sem mandato, ainda que não sejam escolhidos a dedo, mas por instituições, logo
teriam sua legitimidade questionada. Vem daí o referendo mencionado por Mourão.
No entanto, o país regrediu. O próprio conceito de “notável” já nos
proporcionou, entre outros, Toffoli, Lewandowski, Fachin e Rosa Weber. E é
altamente provável que, quanto mais virtudes viesse a ter o produto dessa
comissão, maior a viabilidade de sua rejeição. Para ser boa, a Carta
contrariaria interesses, e a soma dos interesses contrariados a conduziria a
esse desfecho.
Por
isso, sou favorável a sucessivas retificações parciais do texto atual. Embora
laborioso e demorado, esse procedimento será mais seguro e reduzirá o risco de
que a emenda piore o soneto. Obviamente, a primeira e mais urgente mudança é a
do modelo institucional. Entre outros ganhos, isso evitará que a cada quatro
anos nos defrontemos com as insanidades do tempo presente.
*
Percival Puggina (73), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto,
empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de
jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o Totalitarismo; Cuba, a Tragédia
da Utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil, integrante do grupo Pensar+.