- A primeira proposta
de lei de iniciativa popular na Carta Magna de 1988 -
Recentemente, muito se
festejou sobre a campanha do Ministério Público Federal acerca das dez medidas
contra a corrupção que apresentou proposta subscrita por mais de dois milhões
de eleitores brasileiros. Como o próprio nome já nos faz concluir, as mesmas
pretendiam erradicar ou ao menos reduzir os atos corruptivos dos agentes
públicos que, infelizmente, viraram corriqueiros nos noticiários do país. Em um
contexto democrático brasileiro atual, no qual nos deparamos com uma profunda
reformulação dos três poderes (executivo, legislativo e judiciário), a crise
financeira e das lideranças representativas, a proposta veio a calhar.
E o que, de fato,
referida proposta prevê? Vale saber...
1.
implantação de políticas públicas de
informação e prevenção da corrupção com destinação de verbas para que houvesse
conscientização social dos danos acometidos por essa prática ao país;
2.
tipificação do crime de enriquecimento
ilícito aos agentes públicos que apresentarem acervo patrimonial dissonante à sua
renda comprovada;
3.
aumento de pena para crimes de corrupção
de valores vultosos, bem como a sua equiparação a crimes hediondos, afastando
assim a prescrição;
4.
propostas mais de onze alterações
legislativas no Código de Processo Penal e uma emenda constitucional para que
haja mais celeridade quando do julgamento dos recursos que envolvem “crimes de
colarinho branco”, dentre essas mudanças, encontramos a possibilidade de
execução imediata da condenação quando constatado o abuso do direito de
recorrer pelo juízo, a revogação dos embargos infringentes ou de nulidade, a
extinção da figura do revisor e dos embargos de declaração em face de decisão
em sede de embargos de declaração, a simultaneidade do julgamento dos recursos
especiais e dos recursos extraordinários, novas regras para o habeas corpus, a
execução provisória da condenação proferida por Tribunal de Apelação, que é uma
prática adotada em diversos países;
5.
previsão de mecanismos diversos de
celeridade na tramitação de ações de improbidade administrativa, como por
exemplo, a adoção de defesa inicial única e a criação de varas, câmaras e
turmas especializadas;
6.
reforma do sistema prescricional penal
buscando evitar a impunidade;
7.
alterações quanto as nulidades penais
previstas;
8.
responsabilização dos partidos políticos
e criminalização do caixa dois;
9.
previsão de prisão preventiva para
evitar a dissipação do dinheiro desviado;
10.
recuperação do lucro derivado do crime
através do confisco alargado – permitindo-se o confisco da diferença entre os
valores declarados e os valores de origem ilícita, bem como pela ação civil de
extinção de domínio que possibilitaria à justiça federal a declaração da perda
de domínio dos bens, independente da responsabilização do autor do ato
infracional.
De acordo com o
processo legislativo brasileiro vigente, o referido projeto de lei n.4850/16
seguiu para votação plenária na Câmara apresentando esta a emenda de plenário
n.4, acessória ao referido projeto. Vale esclarecer, por pertinente, que das
dez medidas originárias, apenas três foram preservadas enquanto que sete foram
inseridas versando sobre os mais diversos pontos e temáticas. Com isso,
parlamentar, com mandato em exercício, aduziu, perante o Supremo Tribunal
Federal, medida cautelar de urgência em sede de mandado de segurança
asseverando a multiplicidade de vícios procedimentais formais e materiais. Isto
porque, referido projeto de lei, deveria ser apresentado como proposta de
iniciativa popular e não de iniciativa parlamentar. Esse pequeno detalhe muda tudo,
vez que no regimento interno da câmara dos deputados há previsão de rito
próprio para a apreciação de propostas de iniciativa popular, exercício
soberano do povo, segundo o qual a votação deve ser feita por Comissão Geral e
com a presença de orador específico para defendê-las. Ademais, houve uma
profunda transfiguração temática entre a proposta original e as emendas insertas
pelo plenário.
Assim, em decisão
liminar, no mandado de segurança n. 34.530, houve a suspensão dos efeitos dos
atos praticados no bojo do processo legislativo do projeto de lei 4850/16, determinando-se,
consequentemente, a suspensão da tramitação do projeto de lei da câmara
n.80/2016 perante o senado federal e o seu retorno à casa de origem para que
seja autuado o projeto de lei n. 4850/16 como de inciativa popular, devendo-se
adotar rito procedimental próprio nos termos do regimento interno da casa;
sustando-se, além disso, todos os atos do poder legislativo, pretéritos e
supervenientes, em contrariedade à referida decisão.
Desta feita, a pergunta
que se coloca é? Poderia o poder judiciário adentrar no processo legislativo interna corporis (regimental)? É
importante esclarecer que os atos interna
corporis são aqueles que advém, tão somente, de questões regimentais como a
interpretação, aplicação, desvios ou até atos diretivos. Em regra, para a
doutrina majoritária dos administrativistas, no qual me filio, os atos interna corporis, assim como os atos exclusivamente
políticos são insuscetíveis de controle pelo judiciário (judicial review). Contudo, excepcionalmente, pode haver controle
judicial dos atos interna corporis que
envolverem controvérsia jurídico-constitucional, ou seja, quando violarem a
Constituição.
Ao meu ver, a decisão
liminar prolatada, pelo ministro Luiz Fux, fora assertiva, vez que por previsão
do art. 14, III, da CRFB, a iniciativa popular decorre, por excelência, do
exercício da soberania do povo, abalizada pelo princípio constitucional do
devido processo legal e regulamentada pelos art. 13 e 14 da lei 9709/98, razão
pela qual a transfiguração da lei de iniciativa popular em parlamentar viola a
Constituição que assim a prevê expressamente. Logo, cuida-se de exceção à vedação da não
intervenção judicial aos atos interna
corporis, já que desembocam em controvérsia jurídico-constitucional. Sem
dúvidas, houve um erro procedimental quanto ao rito a ser adotado para a
votação na Câmara de referida proposta. Se haverá aprovação ou rejeição isso é
algo que competirá, exclusivamente, ao Congresso Nacional. Vejam que não houve
manifestação do judiciário sobre esse ponto, mas sim quanto ao regular
procedimento a ser adotado. Não há que se falar então em usurpação de poderes
ou violação à autonomia parlamentar prevista no Pacto de São José da Costa
Rica, tampouco em mudança de jurisprudência da Corte constitucional, mas sim de
hipótese excepcional que autoriza o controle judicial do legislativo.
Giselle
Farinhas é advogada