Enquanto um punhado de militantes petistas protestava contra
a ação da Polícia Federal que conduzira Lula ao aeroporto de Guarulhos, veio-me
à mente imagem com a qual me deparei ontem no Google. Retrata um evento da
campanha eleitoral de 2002. Lula, Genoíno, Mercadante, Berzoini e Alencar
formam um abre-alas e marcham portando faixa, devidamente estrelada, com os
dizeres "Quero um Brasil
decente". Fácil compreender a decepção de quantos creram que a faixa
expressasse um sentimento real.
Os fundadores do PT viam-se como agentes de um
processo revolucionário. Frei Betto,
em artigo de 2007, assim descreve os anseios dos vitoriosos de 2002: "A lua seria o nosso
troféu. Haveríamos de escalar suas montanhas e, lá em cima, desfraldar as
bandeiras da socialização compulsória". O nome disso é revolução. E
nenhuma causa revolucionária consegue ser compatível com o Estado de Direito. A
revolução por dentro do regime democrático, sem sangue, como sonhou o PT, é uma
lavoura que, entre outros requisitos, precisa ser irrigada com dinheiro.
Dinheiro para as campanhas eleitorais, para a militância e para os movimentos
sociais controlados pelo partido, para manter operante um exército de
jornalistas e formadores de opinião. É preciso ter e manter multidão de agentes
que começam no sanduíche de mortadela, mas miram o topo da cadeia alimentar revolucionária,
onde estão a lagosta ao thermidor e o Romanée-Conti. O sanduíche é meio e não
fim de toda jornada socialista. Não conheço um só revolucionário que queira o
comunismo para continuar batendo cartão e operando a mesma máquina.
Numa democracia, o poder
é buscado dentro da regra do jogo, dentro da lei. No entanto, se o objetivo é
revolucionário, pertence à própria natureza do processo que seus agentes se
considerem acima da lei. A causa vem antes e lhe é superior. A lei que não
convém à causa é iníqua e não merece respeito. Na primeira etapa, então, se
instala esse sentimento de superioridade em relação à ordem jurídica. Face bem
visível do que descrevo pode ser observada nos assim chamados "movimentos
sociais". Quem se opõe às suas ações é acusado de criminalizá-los. Por
quê? Porque quem está acima da lei não comete crimes.
É aí que se começa a
explicar o incomparável desastre moral que acometeu o PT. A mentira vira
argumento. Calúnia, difamação e injúria ganham utilidade política. Fatos são substituídos
por versões. A verdade perde interesse e utilidade. E por aí vai a decência
para o brejo.
As reações que surgem
nestas horas às ações da PF, do MPF e do juiz Sérgio Moro são motivadas pelo
mesmo fenômeno. Ou seja, o petismo ainda não caiu em si. Na fala do presidente
Rui Falcão, na gritaria dos militantes no aeroporto de Guarulhos, no posterior
discurso de Lula à claque petista, percebe-se a mesma convicção: todos supõem
ser devida a seus líderes e ao partido uma reverência que os tornaria inatingíveis
pela Justiça. E à sombra dessa reverência deveriam ficar resguardadas as
condutas mais suspeitas e a vertiginosa prosperidade pessoal e familiar de
tantos. A infinita sucessão de escândalos não é entendida como conduta fora da
lei, mas situação normal para quem está acima dela.
________________________________* Percival Puggina (71), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.