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Maria Lúcia Massot |
Vem de longe a história dessa mulher de 58 anos, mais de 100 quilos e fôlego de maratonista. Há 18 anos, quando o Recreio dos Bandeirantes era uma terra inóspita na cidade e a imobiliária Litorânea uma companhia saudável, ela comprou um terreno. A ocupação da região havia sido planejada por Lúcio Costa, respeitado urbanista que produziu obra aplaudida por sábios do assunto em congressos internacionais. Quando Maria Lúcia empilhou os primeiros tijolos no terreno de pouco mais de 600m2, em volta era tudo mato. Mas nos planos de Lúcio, a área em frente, de 7 mil m2, estava destinada a um condomínio de 25 casas. Era 1984 e de sua terra se podiam ver alguns casebres de pescadores, a meio caminho da praia, distante algo como 500 metros.
Os 10 anos seguintes, Maria Lúcia gastou em cimento e lágrimas. Inflação alta, dinheiro curto, o lugar era longe. Nas suas contas, porém, o resultado seria positivo. Afinal, já havia percorrido um pedaço do mundo. Trabalhara nas embaixadas do Brasil em Paris e Atenas, no escritório da Petrobras em Paris. Os dólares do cofrinho estavam virando paredes, enquanto à volta, aqui e ali, brotavam construções de boa qualidade. Eram os pioneiros da valorizada gleba C, região absolutamente plana no Km 19 da avenida das Américas. De longe, ainda, dava para ver os primeiros sinais da baderna urbana que viria: a cada semana mais barracos se enfileiravam na margem do canal da Taxas.
Quando deu-se por satisfeita com sua obra, uma construção simples, porém sólida, Maria Lúcia resolveu transformar a calçada em jardim. Plantou grama, árvores, flores, olhou para tudo aquilo e concluiu que tinha valido a pena. Era 1995. A cidade vivia a primeira encarnação de Cesar Maia na prefeitura e em seis meses o prefeito plantou-lhe uma favela à porta da casa. “Foi uma selvageria, um desrespeito. Eles removeram 66 barracos do canal e, não sei como, juntaram mais gente e botaram 81 casas aqui. Fizeram esse monstrengo”, revolta-se a arquiteta. Não é para menos.
O prefeito não só empilhou 81 casas no espaço destinado a 25, como passou batido por quase todas as posturas municipais que regem as construções. Portas, janelas, altura de prédios, muros, afastamentos, tudo ali está em desacordo. É a mais clara exibição de que, do ponto de vista do poder público, não são os brasileiros iguais perante a lei. De um lado da rua, onde está a casa de Maria Lúcia, o município exige que a calçada tenha três metros de largura. No lado da favela, o prefeito botou as casas sobre a calçada e deixou 1,5 metro para as pessoas andarem.
Esse regime de absurdos bateu um dia à porta da arquiteta para dizer-lhe que não poderia construir nos fundos de casa um canil com mais de 1,5 m2, sem pagar a licença de obra à prefeitura. Ela pagou. No outro lado da rua, desde que foram entregues, várias casas já tiveram as fachadas transformadas para instalar biroscas, açougues e lojas de consertos de bicicletas. Na terça-feira, 3, um morador dessa zona livre de impostos erguia mais um andar em sua casa. Não tinha projeto, licença ou visitas da prefeitura. Separa esses dois mundos uma rua com seis metros de largura. Parece piada. Talvez por isso, ocorra na rua Leon Eliachar, humorista que publicava uma página semanal na extinta revista Manchete e, não raro, manifestava perplexidade diante do exótico.
A prefeitura que exibe nos jornais trabalho contínuo para conter as favelas é a mesma que ali incentiva o crescimento. Na continuação da Barra da Tijuca, quando se chega ao Recreio dos Bandeirantes, por trás dos edifícios e shoppings alinhados ao longo da avenida das Américas viceja a ocupação desordenada. Principalmente para o lado da praia. Na faixa de terra que o Plano Lúcio Costa destinou ao que seria Barra Bonita, multiplicam-se os loteamentos clandestinos, a grilagem de terra e as construções ilegais. A Litorânea, grande proprietária da área, foi para o ralo e a maior parte de seus terrenos está inscrita na dívida ativa do município por falta de pagamento do IPTU. Pelo tamanho da conta, a terra já pertence à prefeitura, o que só abre a porta à baderna.
A passagem do projeto Favela Bairro pela área – com o secretário de Habitação, Sérgio Magalhães, caçando votos de microfone em punho – deitou asfalto das ruas informais e deixou as ruas previstas do bairro com a mesma lama de antes. Apenas repetiu o resultado do programa em todos os lugares: favoreceu a especulação imobiliária. As lajes estão sendo negociadas por R$ 30 mil, em média. A venda de lajes é uma modalidade ilegal de negócio produzida pela pressão imobiliária nas favelas do Rio. Nasce da seguinte maneira: uma pessoa constrói um barraco de alvenaria e, em lugar de telhado, cobre-o com uma laje de concreto pré-moldado. Vende o barraco para um e, para outro, o direito de construir sua morada sobre a laje.
Mas não só lajes e barracos entraram em alta na área do Terreirão. Dezenas de edifícios estão em fase de acabamento. Raros são os licenciados pela prefeitura. Pertencem a políticos, policiais, pequenos empresários. Tem de tudo. O deputado Domingos Frazão é dono de um, “mas botou em nome do tio dele”, informa o vizinho do lado. É um prédio de seis andares divididos em kitinetes à venda por R$ 35 mil cada. A expansão acelerada une as favelas à do Terreirão, maior delas, num complexo. Durante o dia, oferece comércio como a rua da Alfândega, no Centro da cidade. À noite, tráfico como o morro do Alemão, na Zona Norte, e muito funk e forró.
Na música, começaram os desentendimentos entre Maria Lúcia Massot e seus novos vizinhos. Na terceira madrugada seguida sem dormir chamou a polícia. Não aguentava mais o volume do funk que saía dos alto-falantes que o dono de uma birosca em frente havia posto na calçada. Descobriu, então, que a lei do silêncio só tinha vigência no seu lado da rua, mas não desistiu. Queixou-se ao prefeito, à Polícia Militar, ao Ministério Público e não conseguiu nada, além da indisposição da vizinhança. Um dia, cansados daquela mulher que insistia em dormir nas noites de sexta, sábado e domingo, os vizinhos apedrejaram-lhe a casa e ela resolveu pular fora enquanto tinha pernas para correr.
Da Justiça, obteve apenas a redução do IPTU à metade. Paga agora R$ 1 mil por ano. Pediu indenização por danos morais, mas perdeu. “E ainda tive de ouvir o advogado da prefeitura me dizer, na frente do juiz, que eu tinha toda a razão”. Perito nomeado pela Justiça avaliou sua casa em 147 mil Ufir, hoje R$ 178 mil. Só o terreno, em ruas próximas sem favela à porta custa R$ 200 mil. Maria Lúcia sabe que, se insistir, poderá conseguir que a prefeitura desaproprie sua casa, mas vai receber em precatório, ou seja, talvez nunca ponha a mão no dinheiro. “Quanto tempo ainda me resta? É muito difícil recomeçar aos 58 anos”, conclui.
Hoje ela vive num apartamento alugado e paga o caseiro, Sílvio, para alimentar e cuidar dos cachorros que ficaram na casa. Quase todos os dias, ao volante de uma camioneta empoeirada, percorre o lugar que há 18 anos escolheu para erguer sua casa. Xinga grileiros e reclama no 31º Batalhão da PM que as leis de trânsito não estão sendo respeitadas. A polícia promete-lhe providências, mas os caminhões de frete continuam estacionados nas esquinas e as vans sobre as calçadas da praça, na avenida Niomar Bitencourt. Ela fotografa tudo e mostra na página que um amigo americano a ajudou a construir na Internet (endereço abaixo). Notícias, artigos, denúncias sobre a desordem urbana do Rio de Janeiro ela remete por e-mail para milhares de destinatários. Sempre lembrando que o prefeito, na campanha, prometeu um choque de ordem na cidade.
Há alguns meses, Maria Lúcia lembrou que Cesar Maia, quando mudou para um endereço nobre na praia de São Conrado, fez calar um trailer que, à noite, tocava música perto de seu prédio. A idéia não a abandonou mais. Comprou uma barraca numa lojinha de camping, um lampião, pequenas tralhas de acampanhamento e já planeja o desembarque. Não vai abrir o som do funk, porque não gosta do gênero, mas talvez possa até fazer um churrasquinho. Se o prefeito desarrumou-lhe completamente a vida, ela está decidida a perturbar um pouco a dele. É possível que não consiga nada, mas vai ser divertido.