As mãos estavam atarefadas em deslizar pelas pernas macias o creme de óleo de amêndoas. Após o banho quente, o complemento incluía, além do hidratante, a escova nos cabelos e mil outros pequenos detalhes tão afeitos à vaidade feminina. A porta do banheiro da suíte estava aberta para ouvir a televisão do quarto de casal.
“O cantor Michael Jackson faleceu devido a uma parada cardíaca...”, a voz do apresentador do jornal das oito a despertou de preocupações consigo mesma. Ela correu para o quarto como um torpedo. Estava morto o ídolo do tempo em que era menina. Ficou pasma da coincidência. Hoje, na hora do almoço, conversando com uma colega do escritório, tocara no nome do cantor. Devido à rádio que tocava no momento uma música da década de 70.
_ “Essa é do tempo da brilhantina”, puxou conversa.
_ “É, e eu curti”, comenta a outra.
_ “Embora fosse minha época, pois sou de 69, não cheguei a aproveitar este tempo. Impossível ir para discoteca com menos de oito anos de idade”, riram. “Agora peguei o Michael Jacson no tempo do Thriller, em 1984. Fazia sucesso”, disse para amiga.
Ela ali diante do televisor, ouvindo que o Michael havia morrido. Se o acontecimento fosse há dez anos, teria chorado, se descabelado. Nunca fora em shows, mesmo porque o cantor raramente veio ao Brasil. Não por falta de vontade. É que inexistiam chances à época de ela ir a qualquer cidade do mundo na qual o cantor estivesse se apresentando. Era fã comum. Comprara disco, fita e, recentemente, CD e DVD para apreciar o músico.
Quando o ídolo morre é dureza. A mídia ajuda a aguçar o sentimento de tristeza, de perda. Imagens mostrando este ou aquele detalhe para recordar os momentos áureos do artista. Mesmo os que pouco davam trela para o sujeito à época, ficam sensibilizados com a exposição da trajetória de vida do famoso. Para os fãs legítimos, o choro é inevitável. Na hora que chega aos ouvidos a morte do ídolo há baqueado, uma falta de rumo momentâneo. Assemelha-se à perda súbita do emprego ou da morte inesperada de um parente.
Às vezes o impacto não ocorre de imediato. Ela recorda do acontecimento envolvendo os Mamonas Assassinas e Renato Russo em 1996. Era a primeira vez que ídolos seus morriam. Sim, Airton Senna foi antes, mas ela nunca gostou muito de Fórmula 1. Na verdade era a primeira vez que a morte se apresentava tão de perto. Estava na faculdade. Comia um lanche na cantina. Na tevê, a reportagem. E os colegas vidrados na tela. Com a indiferença de céticos, uns zombavam: “é jogada de marketing”, diziam, “onde já se viu dá tanta importância para artista a ponto de virar comoção nacional enquanto nas favelas morrem pilhas de seres humanos todos os dias”. Os fãs, por sua vez, ficavam silenciosos, absorvendo cada gota de notícias e em estado comovente.
Hoje, ela estava sozinha. O marido ainda no serviço. E a obrigação de tratar das duas crianças. Quando por fim os filhos estavam arranjados, banho tomado e alimentados, ela pôde sentar-se no sofá. A mão tateava entre vários DVD em busca do DVD do Michael. Leu a resenha na contra-capa. Mas devolveu o DVD à estante.
Ouviria o DVD quem sabe outro dia. Resolveu dar espaço à televisão. Seria certeiro que apareceriam imagens do músico desde o tempo do The Jackson Five, quando cantando com os irmãos maiores, até as últimas crises de saúde e de personalidade. Destaque para o dia que apareceu com o filho bebê na janela do prédio. Ela sofria pela alma atormentada que acreditava ter o músico, querendo se destacar numa sociedade que por décadas colocara o negro como cidadão de segunda classe. As tentativas de afinar o nariz e europeizar o rosto teriam sido fruto danoso do American Way?
O que importa é que ele veio, cantou, fez gerações se apaixonar por seu estilo, e agora sai da vida como um artista sai do palco.
*Ronaldo Duran, romancista, escre nesta coluna toda semana. Contato: ronaldo@ronaldoduran.com