sábado, 22 de novembro de 2008

Rio de Fezes

Marina da Glória com suas águas apodrecidas pelo esgoto

Ficar acusando a histórica incapacidade gerencial do administrador público brasileiro, seus desvios de conduta e sua certeza da impunidade não me adianta mais diante do claro quadro de metástase ambiental na qual minha região metropolitana se encontra.
O que eu quero mesmo é indicar um caminho após ter avaliado pelo projeto OLHOVERDE a situação dos rios compreendidos entre os municípios do Rio de Janeiro e Duque de Caxias, uma das áreas mais detonadas ambientalmente da Baía de Guanabara. Lá, os canais do Mangue, Cunha, rios Irajá, São João de Meriti, Sarapuí-Iguaçú, morreram. Sim morreram, visto que a carga de esgoto in natura produz um quadro completo de ausência de oxigênio. Qualquer coisa que dependa de oxigênio da coluna dágua daqueles “rios” está ferrado, ou melhor, morto. O cenário e seus odores são apocalípticos.
Aliás, o termo rio para aquilo que se vê não é o mais correto, pois na verdade o que temos são imensos valões de esgoto a céu aberto há décadas. Nenhuma novidade!
Agora fica a pergunta o que fazer com esse passivo ambiental que só faz crescer em intensidade e espacialidade?
Enquanto o Programa de Despoluição da Baía de Guanabara caminha devagar, com resultados ambientais pífios diante do UM BILHÃO E TANTOS MILHÕES DE DÓLARES já gastos; enquanto as políticas de habitação e transporte continuam uma miragem utópica nas políticas governamentais e conseqüentemente cada um dá seu jeito de morar onde dá e deixam; enquanto o esgoto não para de jorrar dia e noite junto com o lixo que às toneladas invadem as águas da Baía de Guanabara e seus ecossistemas periféricos e enquanto o tempo passa e quase nada de efetivo, estrutural é feito, o que de fato podemos indicar como um dos possíveis caminhos para em parte reverter esse caos?
Minha sugestão é baseada nos dados do tratamento conseguido por Unidades de Tratamento de Rios (UTRs), que em resumo são estações que instaladas na calha dos rios transformam pasta de caca em água, com reduções de 99.9% de coliformes fecais e 98% de fosfato entre outras reduções draconianas. Essas UTRs, como à que venho lutando junto com o MP Estadual para que seja finalizada no arroio Fundo ainda como o famigerado legado ambiental dos jogos Pan Americanos, seriam instaladas nos rios acima indicados impedindo a chegada do esgoto in natura e lixo na baía de Guanabara. Por aquilo que me informei, estimo que em VINTE E QUATRO MESES teríamos a região da Baía de Guanabara mais detonada senão limpa, muito menos impactada do que temos hoje, uma verdadeira cloaca na porta internacional de entrada da cidade do Rio de Janeiro.
Falando em números, o pacote das seis UTRs, sem desconto nem pechincha, sairia por R$270.000.000,00 (DUZENTOS E SETENTA MILHÕES DE REAIS). Puxa, mas é muita grana! Realmente é mesmo, mas corresponde pouco mais da metade do que está se torrando com o “presente de grego” que o atual prefeito da cidade do Rio de Janeiro deixará como seu legado histórico para os contribuintes de nossa cidade, na apoteótica e faraônica Cidade da Música que só ela já está na casa dos R$ 500.000.000,00 (QUINHENTOS MILHÕES DE REAIS)! Ou seja, afirmo claramente que o custo desta única rocambolesca obra poderia ter recuperado em boa parte a qualidade das águas da Baía de Guanabara, sistema lagunar da baixada de Jacarepaguá e Baía de Sepetiba!
Concluo que as perguntas básicas para de fato resolvermos esse problema ambiental vergonhoso e histórico são: A sociedade está satisfeita com o estado de degradação da Baía de Guanabara e demais áreas degradadas? Quanto a sociedade quer gastar para reverter esse quadro? Quanto tempo a sociedade quer continuar gastando dinheiro sem ver resultado claro dos investimentos efetuados? Qual o custo ambiental, sócio-econômico, saúde pública e político do estado de degradação? Qual a relação do custo / benefício que teríamos se adotássemos as UTRs como parte da solução visando não ampliar o passivo ambiental que só faz crescer das bacias hidrográficas em direção às baías, lagoas, praias e manguezais? Se quisermos de fato as tais olimpíadas em 2016, até quando vamos continuar acreditando em projetos que consomem quantias absurdas de recursos sem de fato nada apresentarem de concreto quando olhamos para as águas pútridas de rios, baías e lagoas?
Eu tenho um claro rumo, e ele está associado com a melhoria quase que imediata nas águas não apenas da Baía de Guanabara, mas também do sistema lagunar da baixada de Jacarepaguá e Baía de Sepetiba nos próximos dois anos.
Não há falta de dinheiro, com ou sem crise mundial, sempre o que houve e haverá foi o corporativismo, a interferência de interesses econômicos poderosos associados com administradores públicos de gestões passadas, negligentes e com a certeza da impunidade de seus desmandos.
Se existe outra solução técnica em curto prazo e com valores mais modestos que me apresentem, pois como contribuinte que acaba pagando tudo e não recebendo sempre quase nada, ficaria interessado em conhecer.
No sentido de não ser chamado de simplicista, diante de tamanho problema ambiental, gostaria de relembrar sobre as mortandades da Lagoa Rodrigo de Freitas do qual participei diretamente nos últimos vinte anos. Por décadas, dezenas de trabalhos foram efetuados sob os mais variados enfoques, visando identificar as causas dos desequilíbrios ambientais que por fim geravam as temidas mortandades que vitimavam centenas de toneladas de peixes por ano.
A partir de 1989 quando iniciei meus trabalhos para a recuperação dos manguezais na mesma lagoa, percebi facilmente que o sistema de águas pluviais era regularmente utilizado como galerias de esgoto. E não era pouca caca não! Era muita, de inúmeros pontos e dada a constatação, iniciei uma série de denúncias pela mídia e para os órgãos “competentes” visando resolver a questão. Foi praticamente, uma década de brigas com a CEDAE que negava qualquer lançamento de esgoto, bem como aquele eterno e típico jogo de empurra entre prefeitura e estado, visto que filho feio não tem e nunca terá pai.
Foi quando em 1999 alertei o então secretário de meio ambiente do estado que a coisa ia piorar, visto que a situação se agravava e quem deveria estar agindo continuava negando o óbvio. Lembro como se fosse hoje o documento por mim produzido, indicando os pontos de despejo na Lagoa, sendo encaminhado ao então secretário bem como a um diretor da estatal. Nada foi feito e as conseqüências então aconteceram com as mortandades de 400 toneladas de peixes recolhidas durante os verões de 2000-2001-2002. Diante da apatia governamental denunciei já em 2000 toda aquela situação não apenas à polícia federal como espalhei o que acontecia a todos os meios de comunicação.
Toda essa história gerou o abraço à Lagoa e depois uma ação conjunta envolvendo moradores, o Carlos Minc, então deputado estadual e o Ministério Público exigindo da CEDAE um diagnóstico da situação para posteriores ações de saneamento. Os resultados da diagnose, nada mais foram do que os esperados:

1-A CEDAE de 1985 a 2000 havia investido na rede de esgoto da região da Lagoa menos de 1% da arrecadação conseguida na mesma região, isto é, a política da estatal era de usar até acabar, gerando o completo sucateamento das elevatórias e demais equipamentos;
2-51% da rede de esgoto (os canos) tinham mais de 60 anos.
Moral da história o sistema era um queijo suíço e toda o esgoto produzido na região ia parar nas águas da Lagoa que por sua vez consumia o oxigênio e conseqüentemente de forma isolada ou associada com outros fatores coadjuvantes acabava exterminando os peixes e demais organismos.
Finalmente a estatal assinou um termo de ajuste de conduta com o MP Estadual e como sempre desrespeitando prazos estabelecidos, foi recuperando lentamente o sistema anteriormente em colapso. Muito bem, desde então parou de morrer peixe e o ecossistema da Lagoa vai se recuperando. Que incrível coincidência! Teria sido um milagre? Uma ação divina? Nada disso, apenas a identificação do problema e a resolução do mesmo. Nada mais, nada menos.
Neste exemplo da Lagoa eu gostaria que todos entendam que o estado de degradação que vemos ao nosso redor nada tem haver com grandes dificuldades técnicas, falta de recursos ou uma sina religiosa, mas quase que exclusivamente uma mistura da criminosa ação de interesses econômicos e políticos/corporativistas, onde a falta de pressão da sociedade acaba dando o tempero final para esse prato indigesto.

Reitero ser possível sim em VINTE QUATRO MESES, reverter o cenário apocalíptico que eu pessoalmente acompanho na prática nas lagoas da baixada de Jacarepaguá, como nas baías de Guanabara e Sepetiba, bastando para isso vontade política e pressão da sociedade.
Destaco que a solução das UTRs não pode ser encarada como uma ação única e milagrosa para todo o passivo ambiental existente, mas complementar a tudo que deveria estar sendo feito, como aquilo que ainda falta fazer pelo PDBG e pelas políticas de habitação e transporte. Esta solução tem como maior efeito à não ampliação do passivo ambiental exportado pelas bacias hidrográficas convertidas em valões para as baías, lagoas e praias.
Não tem como escapar. Vamos ter de pagar caro pela nossa omissão diante de tanta incompetência administrativa, mas que pelo menos paguemos por algo que venhamos de fato a receber e não apenas por esperanças para daqui há uma, duas ou três décadas termos algo que não iremos usufruir. A recuperação é factível, basta querer. Eu garanto.

Mario Moscatelli é Biólogo e Professor de Gerenciamento de Ecossistemas do Centro Universitário da Cidade